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Edição Nº 37 - 13/03/2010
JAIME GUSMÃO - PRESIDENTE DA ABMS DE 1982 A 1984
Jaime Gusmão: um engenheiro em prol da sociedade

Aos 78 anos, o engenheiro Jaime de Azevedo Gusmão Filho, que presidiu a ABMS de 1982 a 1984, traz nos olhos o espírito inquieto de um homem que escolheu a engenharia para poder ajudar o maior número possível de pessoas. “Ao contrário da medicina, que atende a um paciente por vez, eu consigo alcançar milhares de pessoas fazendo uma única obra ”, afirma o nordestino que dedicou boa parte dos quase 60 anos de carreira à aplicação da engenharia na melhoria de condições de vida da população. Professor há mais de meio século, foi um dos precursores das ações de mapeamento de encostas para prevenção de deslizamentos do nordeste.

O professor, que ainda se revolta com a existência de miséria humana, espera deixar como legado a busca por fazer da engenharia um instrumento útil para a melhoria das condições de vida na sociedade. É também consultor, projetista e um dos líderes históricos da engenharia geotécnica. Deixou sua marca nas páginas das principais obras de engenharia do nordeste, participando da restauração de Olinda na década de 80. Ao longo da carreira, foi presidente de entidades como o Crea - PE e o Clube de Engenharia do Pernambuco, além de presidir a ABMS.

O engenheiro dirigiu também a URB - Empresa de Urbanização da Prefeitura de Recife, na qual coordenou projetos de mapeamento e desocupação de áreas de risco, reduzindo a taxa de mortes por escorregamentos de terras. Ao comemorar 60 anos de história, a ABMS presta aqui uma homenagem a um de seus ex-presidentes e ícone da entidade, Jaime Gusmão. “Um presidente que contribuiu em demasia para a integração e o desenvolvimento dos núcleos regionais da ABMS. Uma figura ímpar de nossa profissão e de nossa entidade”, declara Jarbas Milititsky, atual presidente da ABMS. Na foto, Jaime durante discussão sobre os problemas urbanos das encostas nordestinas.

Desde cedo o pequeno Jaime, nascido no ano de 1932, na cidade de Caruaru em Pernambuco, sabia o que queria ser quando crescesse. A escolha pela engenharia veio ainda no colégio, quando Jaime encontrou uma profissão que o permitisse ajudar a melhorar a vida de muitas pessoas, ao mesmo tempo. Em 1950, a escolha do rapaz o colocou entre os primeiros classificados no vestibular para o curso de engenharia civil na Universidade do Recife, hoje Universidade Federal de Pernambuco, onde estudaria pelos próximos dois anos.

No começo de 1952, o aluno de engenharia se mudaria para o Rio de Janeiro, então capital do país, para cursar o terceiro e o quarto ano da graduação, na Escola Nacional de Engenharia. Enquanto isto, também estudava física no Centro Brasileiro de Ciências Físicas, na Urca, com bolsa do CNPq, porque gostava muito de física e tinha dúvidas sobre a sua carreira. Do curso de física, Jaime participou apenas nos dois primeiros anos: “Havia excelentes professores, como César Lattes e José Leite Lopes, mas eu sentia vontade de me dedicar somente à engenharia”. Realmente, isto possibilita ajudar milhares de pessoas, através de construções e melhorias de infra-estrutura, como saneamento, tubulações elétricas e habitação, sem falar em estradas, pontes e barragens, Jaime voltou, então, ao Recife, em 1954, quando cursou o quinto ano de engenharia e se formou engenheiro civil.

O aluno professor
No segundo semestre de seu último período de graduação em engenharia civil pela Universidade do Recife, o aluno Jaime passou a ocupar os dois lados da sala de aula. Aos 22 anos, foi nomeado professor, a título precário, do curso de engenharia civil. “Ainda faltavam seis meses para que eu fosse graduado. Mas a necessidade de professores na Universidade era grande. Depois de passar por um concurso de avaliação, fui nomeado pelo reitor ao lado de outros três colegas”. Na foto, Jaime em sala de aula, no início da carreira como professor.

Graduado ao final de 1954, Jaime interrompeu a carreira de professor para frequentar o primeiro curso de especialização em engenharia civil do Brasil. Com bolsa do governo federal, através da CAPES, Jaime voltou ao Rio de Janeiro, no começo de 1955. “Sinto-me honrado de ter participado do primeiro curso brasileiro de especialização em engenharia civil. O curso foi criado por Antônio Noronha, notável professor de Pontes, da Escola Nacional de Engenharia, e era constituído de professores do mais alto nível: Aderson Moreira da  Rocha, Odair Grillo, o próprio Noronha, o ícone da engenharia local o venerando professor Benévolo, e assim por diante”.

O início da carreira técnica
Foi durante o período do curso de especialização que o aluno professor se firmou, também, na carreira técnica. “Trabalhei no escritório de engenharia de Paulo Fragoso, um dos melhores do RJ, responsável pelo cálculo do estádio do Maracanã, que recebeu a Copa de 1950”. O estudo e a prática da engenharia ocupavam todo o dia de Gusmão. O curso de especialização era dividido em dois turnos – manhã e noite. Durante a tarde, Jaime se dedicava ao trabalho, no escritório de Paulo Fragoso.

E chega a geotecnia
Durante o período de pós-graduação, o sonho de engenharia foi direcionado para um campo que Jaime, até então, não conhecia – a mecânica dos solos. “Eu me encantei pela aula do professor e pela matéria dada. Foi quando parei, e pensei: dentre todos os ramos, é deste que eu realmente gosto”. O professor da disciplina era Odair Grillo, um dos fundadores da mecânica dos solos no país. Uma personalidade que Jaime passou a admirar e seguir. Chegou a trabalhar com o professor em sua empresa de engenharia, a histórica Geotécnica.

Jaime trabalhou com Grilo por seis meses e se lembra até hoje das experiências que passou ao lado do professor. “Uma vez, nós fomos a Copacabana ver um prédio que estava recalcando. O edifício tinha sido feito em fundação direta, e começou a descer, violentamente. A causa do problema era um prédio novo, vizinho, cuja fundação se construía abaixo da cota do vizinho” relata. “Lembro-me disso perfeitamente. O prédio voltou a ficar em segurança, com a solução dada por Grillo”.

Da pós-graduação para os Estados Unidos
Ao longo dos dois anos de especialização, o aluno professor escrevera em sua trajetória as primeiras páginas de um texto que o acompanharia ao longo de toda a vida. Incentivado por Odair Grilo, Jaime ia seguir para a Universidade de Illinois, nos Estados Unidos, para fazer seu mestrado em Mecânica dos Solos. Não teve licença da Universidade para passar dois anos fora, novamente. Pediu demissão e seguiu somente com a bolsa da CAPES.

Entre 1958 e 1960, recém-casado, o engenheiro viveu e estudou na Universidade de Illinois, ao sul de Chicago, onde fez seu mestrado em mecânica dos solos e fundações. “Tive professores notáveis, como Ralph Peck, Dan Deere e Newmark, este chefe do departamento civil, além de aulas de Tchebatoriof, Bjerrum e o grande Terzaghi, que é o pai da mecânica dos solos”. Durante o período que passou , Jaime e a esposa tiveram o primeiro filho.


Uma das principais lições que o professor carrega de seu mestrado não vem do conteúdo ensinado, mas “do modo como foi ensinado”. “Aqui no Brasil, naquele tempo, a gente somente encontrava o professor na hora da aula. Lá, nos EUA, não. Estavam em seus gabinetes e podíamos conversar, tirar dúvidas e conviver à vontade. Eu pude sentir, assim, o que é uma universidade de verdade”, afirmou. “O que me preocupava era quanto longe nós estávamos dela”. 

A  Mecânica dos Solos no nordeste
Ao voltar para o Brasil, em 1960, Jaime retomou o cargo de professor da Universidade do Recife, hoje Universidade Federal de Pernambuco. O ex-aluno professor voltou como professor especializado em Geotecnia e ajudou a fundar a cadeira de Mecânica dos Solos e Fundações, onde lecionou por 42 anos. Na foto acima, Jaime ao lado dos alunos durante aula prática da turma de Engenharia Civil da Universidade do Pernambuco.


“A magia da aula de Jaime sempre foi trazer a prática para a sala de aula”, afirma Roberto Coutinho, ex-aluno e companheiro de escritório, que hoje leciona ao lado de Gusmão, na UFPE. Desde que voltou do mestrado nos Estados Unidos, Jaime incorporou projetos práticos ao conteúdo teórico de suas aulas. “A partir do primeiro ano, os alunos tinham de fazer projetos de fundações, estradas, barragens, apresentando relatórios finais, com memória de cálculo”, lembra Jaime Gusmão. “É o modo de deixá-los mais próximos da realidade. Eles vão treinar o dia a dia de sua profissão, algo que os livros não podem trazer”.


Em 1979 com professores formados pela COPPE-RJ, fundou o curso de pós-graduação em Geotecnia na mesma Universidade, inicialmente com mestrado, depois com doutorado. As aulas, até hoje, ocupam dois dias de sua semana. Publicou mais de 100 trabalhos e escreveu 10 livros entre técnicos e assuntos diversos, como “Desempenho de obras geotécnicas”. Os professores da área continuam a trabalhar em várias frentes, e suas pesquisas incluem estudos de deslizamentos, riscos geológicos, carta geotécnica do Recife, solos especiais como argila mole, solos expansivos e solos colapsíveis, resíduos sólidos e contaminados, recuperação de rejeitos e métodos infinitesimais em mecânica dos solos.

Um profissional da sociedade
Professor convicto, Gusmão dividia seu tempo entre a sala de aula e o escritório de consultoria. A prática da profissão levou o engenheiro a participar das principais obras da região nordeste. Entre fundações de edifícios de grande porte, aterros, obras de contenção, etc., Jaime dedicou grande parte de sua vida e carreira à aplicação da engenharia na solução de problemas sociais.

Para mobilizar outros engenheiros e alcançar autoridades democratizando os órgãos, Jaime presidiu e dirigiu as principais entidades da classe, como o CREA-PE (Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura) e o Clube de Engenharia do Pernambuco, além de participar, também, do Confea (Conselho Federal de Arquitetura, Engenharia e Agronomia).                                      

A ABMS
Entre os anos de 1982 e 1984, Jaime presidiu a ABMS. No início dos anos 80, antes de assumir a presidência, Jaime, na época presidente do Núcleo Nordeste, coordenou a organização de um dos Cobramseg, de maior sucesso na entidade. Relembrado até hoje, “O Cobramseg do nordeste, comandado por Jaime, foi muito bem visto pelos associados e também pelos participantes de fora do país”, lembra Coutinho, ex-aluno e colega de Jaime Gusmão. Na foto ao lado, Jaime Gusmão, enquanto presidente da ABMS, durante a comemoração do centerá de kalr Von Terzaghi.

Um fato curioso ocorreu no congresso, na tentativa de trazer o Prof. O. Wipplinger, da África do Sul. Eis o que diz, a respeito, Jaime Gusmão: “Foi tentato de tudo, junto às autoridades diplomáticas brasileiras. Elas se recusavam em dar-lhe visto de professor visitante, por prazo determinado, uma vez que o professor é de um país não democrático. Parece incrível que o Brasil tomasse essa atitude, sendo uma ditadura militar. O professor, sem alternativa, enviou, então, a sua conferência para ser lida no congresso”. 


Depois de ser presidente nacional da ABMS, entre os anos de 1982 e 1984, Jaime viu ser consolidada uma de suas ações, como presidente,   –  a realização do congresso internacional de Mecânica dos Solos em território nacional, em 1989. O 12º Congresso Internacional de Mecânica dos Solos e Engenharia de Fundações acontece no Rio de Janeiro depois do então ex-presidente Jaime Gusmão vencer a disputa, em Paris, e trazer o evento para o Brasil. Conta que, acanhado, usou para isto de um vídeo da VARIG, mostrando o carnaval carioca e o jogo do Flamengo no Maracanã. "Vencemos facilmente, em contraste com o país adversário, a Índia". Na foto acima, Jaime, representando a ABMS e o Brasil em Paris, na disputa para sediar o 12º Congresso Internacional de Mecânica dos Solos e Engenharia de Fundações. Da disputa, o Brasil saiu vitorioso e o Congresso aconteceu no Rio de Janeiro.

Durante os vinte e quatro meses em que presidiu a entidade Jaime teve como objetivo principal unir a entidade por meio da independência de cada núcleo. “A meta era fornecer independência financeira e política para que cada núcleo pudesse planejar e concretizar ações coletivas, com o objetivo de dinamizar a discussão e a prática da geotécnica em todo o país”. Na foto, Jaime, à direita, acompanhado da delegação brasileira durante evento em San Francisco, nos Estados Unidos.

Ao mesmo tempo em que promovia a independência das regionais, Jaime prezava pela inclusão das decisões locais na diretoria nacional. “Mensalmente viajava pelos núcleos, visitando um a cada mês, para saber dos projetos e andamentos”, lembra.

O envolvimento de Jaime chegou ao governo federal. Na fim da década de 70, procurado pelo governo, coordenou a recuperação de Olinda, através da criação de um laboratório de engenharia geotécnica na Universidade Federal de Pernambuco. “Na época, a sociedade pressionava o governo por conta dos deslizamentos, que derrubavam patrimônios históricos da cidade. Fui chamado pelo governo, para dizer qual o Estado que teria condições de coordenar a ação”, lembra. “Não tive dúvidas em dizer que São Paulo e Rio fariam muito bem o trabalho, mas que os professores da região tinham capacidade técnica de abraçar a causa”. O Convênio foi feito, a Universidade colaborou e se começou a trabalhar em Olinda para a solução dos deslizamentos.

A busca por uma atuação útil para a sociedade levou Jaime Gusmão a pressionar as autoridades locais para a redução do número de mortos por deslizamentos, durante os períodos de chuva. Realizou para a prefeitura um mapeamento de risco, necessário, inclusive, para a retirada de famílias dos locais críticos. A solução não fora levada a sério pelas autoridades e os problemas continuaram. Como agravante, o engenheiro realizou um estudo sobre o número de mortos em 20 anos por escorregamentos nos morros do Recife. O resultado encontrado levou ao alarmante índice de 12 mortes anuais. “De 1980 a 2000, 240 pessoas morreram em escorregamentos de terra na cidade”, desabafa Jaime. “Um absurdo, que não poderia mais se repetir”.

Com o resultado em mãos, o engenheiro passou a discutir com autoridades, inclusive com os candidatos a prefeito. De 2000 a 2008, o novo prefeito João Paulo o procurou para ajudar a trabalhar nos morros, em um projeto completo, com equipes permanentes em tempo integral, trabalhando com dedicação exclusiva.  “Nesses oito anos, 90 vidas foram poupadas”, afirma Gusmão. “Desse modo, sim, eu me sinto engenheiro”.

O legado de um engenheiro humanista
Ao longo da carreira, o professor, consultor e ex-presidente dedicou e ainda dedica grande parte de seus dias à projeção de obras contra a seca da região. “O nordeste tem há muito tempo uma preocupação com os efeitos da chuva e um envolvimento do engenheiro na melhoria das condições de vida da sociedade” afirma Roberto Coutinho, ex-aluno e colega de Jaime na Universidade. “Isso nasceu com Jaime e foi plantado por ele no coração de cada aluno que teve o privilégio de se tornar em engenheiro pelas mãos de um humanista e técnico de primeira grandeza”.

O olhar inquieto de Jaime Gusmão ilumina a imagem de um rosto que revela 78 anos de existência, 60 deles dedicados à profissão. O sorriso presente, ao longo de toda a conversa, se revela ainda maior na esperança de fazer um pouco mais pelo que acredita. “Ainda tenho um dever a fazer”, revela. “Gostaria de deixar para os engenheiros a certeza de fazer o seu trabalho como uma melhoria na sociedade. Se eu pudesse, este seria o meu legado. Acredito muito no que faço”.

A e-ABMS é a revista eletrônica da Associação Brasileira de Mecânica dos Solos e Engenharia Geotécnica
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Repórter: Graziele Storani e Renata Tomoyose